Por que falar disso? Dois motivos: o primeiro é que o tal
movimento cervejeiro está crescendo no quadrado. E a medida que cresce, desconhece
a própria história. O segundo, porque sou velha. Tá, nem tanto de idade (são
quarenta num corpinho de trinta e nove, rsrs). Mas porque sou antiga nesta
história, peça de museu, e tive a oportunidade de ver muita coisa nascer,
crescer e em alguns casos, perecer.
Então vamos lá. Comecei a me interessar por cerveja aos 15
anos... Não, para! O passado botequeiro foi a porta de entrada neste mundo para
muita gente. E não precisamos voltar
tanto assim!
Comecei a me interessar por cervejas artesanais em 2007, ano
de nascimento da minha filha. Em 2008, quando parei de amamentar e podia tomar
algo que não fosse um copo, tentava, junto com meu marido, encontrar cervejas artesanais
em Brasília. Terra devastada. As opções eram Brahma, Antártica, Skoll. Era
impossível encontrar cervejas artesanais por aqui. Mesmo as importadas. Lembro de
uma Franziskaner no Carrefour vendida a preço de banana que até hoje a gente
acha que foi vendida tão barata porque ninguém sabia o que era aquilo. Se se
quisesse cervejas, que trouxesse na mala. E a gente trazia...
Haviam dois bares com cervejas em Brasília. A Stadt Bier e o
Godofredo. A Stadt, gostem ou não, foi a primeira cervejaria artesanal do DF. E
a weiss e a Delirium, eram quase as únicas opções de se tomar algo diferente
num bar. Sem falar que eles eram um
brewpub (embora na época ninguém soubesse o que era isso). A Stadt foi a porta
de entrada de muitos no mundo das artesanais. E, o Godofredo servia uma cerveja
que o dono fazia que era uma base de pilsen e levava guaraná (antes da
Göttilich Divina). Neste ano também descobrimos uma pequena lojinha na Asa Norte,
que vendia cafés especiais, temperos e coisas do gênero e tinha uma prateleira
pequena com algumas garrafinhas. Se chamava Empório Soares e Souza. O Empório
SS virou uma Meca! Seus dez rótulos, que era mais ou menos o que tinha a época,
viraram referência! Dali saíram as primeiras trapistas que eu tomei na vida,
algumas pale ales inglesas e a Colorado Indica, que era a melhor IPA nacional
que havia. Ali também conseguimos encontrar pérolas, que nem sei se chegam mais
por aqui, como a Traquair house.
Se encontrar cervejas era uma missão difícil, fazer cerveja
era praticamente impossível. Ninguém fazia. Haviam alguns grupos no finado
orkut de São Paulo, Rio, Santa Catarina e outros estados que começaram na
estrada cervejeira um pouco antes do DF que nos serviam de referência. Mas em
Brasília, necas. Compramos panelas com fundo falso numa loja chamada A Turma,
de Campinas, SP, fizemos um chiller na mão com tubos de cobre da Casa Iracema
no SIA, válvulas de gás de casa de ferragem, furar panela no serralheiro. Os
insumos vinham todos pelo correio, da WE.
Fazer cerveja era uma aventura difícil, desconhecida e sobretudo, muito
cara. Não tinha site de internet, não tinha vídeo no youtube, não tinha ninguém
que ensinasse. Com custo conseguimos uma cópia de um livro chamado How to Brew.
Mas aí que começou a parte mais legal...
Nas idas e vindas ao Godofredo descobrimos que o Leonardo
Botto tinha vindo dar um curso aqui em Brasília, fuçando na internet descobri
um lugar que havia recém aberto as portas chamado Candango Bräu (e vendia malte
pilsen, nos livrando de trazer pelo correio), e pelo orkut, descobrimos que não
estávamos sozinhos na aventura de fazer cerveja em Brasília. Conhecemos outras
pessoas. Um cara de minas, um ex-frei que fez doutorado em teologia, um engenheiro
que ficou anos montado um arduíno, uma
alemão e sua sócia, um conterrâneo de Camboriú, uma menina que fazia vídeos, um
casal roqueiro e o Rodrigo. O Rodrigo era praticamente uma pérola solitária no
Cerrado. Ele fazia cerveja há sete anos! E isto em 2009! O Rodrigo foi um quase
professor da galera. O primeiro encontro dessa turma cervejeira foi como
primeiro encontro de namorados. Só amor (não no sentido literal, claro).
Disso veio a ideia de montar a Acerva, como nos outros
estados (Minas, Rio, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). A
Acerva Candanga foi a primeira Acerva fora do eixo sul- sudeste. Foram meses de
discussões e conversas até a Acerva Candanga sair do papel (e saiu porque havia um grupo de empresários querendo fundar
uma tal Acerva DF, para fins comerciais. Aí a gente correu para se apropriar do
nome). E vingou. Fizemos umas incontáveis brassagens juntos. Ronaldo Morado,
autor do Larousse da erveja, morava em Brasília na época. Era um degustador
experiente, conhecia todo mundo na Brasil. Foi nosso patrono. Ele experimentava
com prazer (tá, as vezes nem tanto) as brejas que fazíamos. E nos dava suas
impressões sensoriais. Na cozinha do meu apartamento, uma cozinha minúscula na
Asa Sul, passaram tantos cervejeiros em formação que nem lembro. Quem dava os
cursos na cidade era o Andreas. Mas eu e o Morris ensinávamos de graça, no meio
de bebedeiras e diversão. Sem fins comerciais. Cerveja não era negócio para a
gente. Então podíamos nos dar esta liberdade. Até porque, nós ingenuamente, não
achávamos que fazer cerveja em casa fosse despertar interesse comercial para
ninguém. Vender cerveja caseira? Era uma polêmica que simplesmente não fazia
sentido. MAPA? Ninguém sabia o que era isso. Montar cervejaria? A gente
precisava aprender muito sobre fazer cerveja. Nem passava pelos melhores
sonhos.
O bacana de fazer cerveja e beber cervejas era a aventura, o
se lançar no desconhecido, a despretensão. Havia na gente um certo espírito
anárquico, que buscava uma forma de vida que combinasse diversão e alegria num
modo colaborativo. Cerveja artesanal não era coisa de homem. Era coisa de
casal, de família (quantas brassagens não havia uma corriola de crianças
brincando enquanto os pais faziam cerveja). Haviam mulheres também. Que faziam
junto. Que iam junto. Que experimentavam junto. E curtíamos todo mundo junto e
misturado. Fazer cerveja era uma modo de vida anti- establishment. Éramos
contra as formas de massificação. E criar uma cerveja era um ato
revolucionário, que mostrava ao mundo que éramos sujeitos criativos e não
engrenagens da grande máquina engolidora de paladares. Não havia a ambição do
business, a necessidade de aparecer, os especialistas, mestres da área, os deuses
da opinião. Éramos só um punhado de pessoas que gostavam de beber cervejas
diferentes, que gostavam de curtir, que estavam aprendendo sobre rampas de
brassagens, processos, leveduras, lúpulos. E tudo isso nos unia. Tacar malte
nas panelas, trocar cervejas, receitas, eram atos desinteressados. Ninguém
cogitava em virar empresário. Não havia o mercado. Não havia o crivo dos egos.
Fazer cerveja era uma utopia boa.
Deste caldeirão tive o privilégio de ver muita coisa
acontecer. O conterrâneo de Camboriú comprou uma kombi, o nosso professor abriu
um bar, a Candango cresceu e formou uma geração de cervejeiros, apareceram
vários outros figuraças para agregar, um biólogo que estudava drosófilas e que está
mexendo com leveduras, um que está para abrir a sonhada cervejaria de anos,
umas meninas incríveis (e mais um mundão de gente que não dá para listar aqui).
Hoje já é possível encontrar cervejas artesanais em inúmeros lugares. Ninguém
precisa trazer malte pale pelo correio e nem enrolar tubos de alumínio num
balde para fazer chiller. Brasília já conta com duas cervejarias (ok, a Máfia
abre em definitivo na semana que vem). Há uma terceira em construção. Quatro cervejarias
ciganas. Há sites, blogs, eventos, um monte de especialistas na área. Temos até
cervejeiros caseiros premiados nacionalmente, e a Acerva Candanga já virou uma
referência.
Mas por que este texto?
porque eu tenho saudade deste espírito errante, desta pegada anti
sistêmica de antes. A cerveja artesanal começou assim, numa perspectiva de libertação de uma mesmice opressora. E aos
poucos, vai se transformando numa diversidade de sabores. Mas também em mercadoria
de consumo fácil. Há muito pouco do espírito investigativo de antes, há pouca
paciência para o aprendizado. Pouco tempo de maturação da ambição pelo negócio.
Um excesso de opiniões permanentes e em
alguns casos, um círculo de iniciados arrogante e sem sentido.
São devaneios de uma mente sonhadora? São sim... Mas estou nostálgica.
E gostaria que as pessoas em geral se informassem sobre os temas nos quais
defendem ou atacam com tanto vigor. Tudo tem uma história. Se apropriar dela é
parte da formação de qualquer pessoa. E com a cerveja artesanal no quadrado não
seria diferente.
Cheers!
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