sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Uma pequena história do movimento cervejeiro em Brasília (ou devaneios de uma noite solitária)

Por que falar disso? Dois motivos: o primeiro é que o tal movimento cervejeiro está crescendo no quadrado. E a medida que cresce, desconhece a própria história. O segundo, porque sou velha. Tá, nem tanto de idade (são quarenta num corpinho de trinta e nove, rsrs). Mas porque sou antiga nesta história, peça de museu, e tive a oportunidade de ver muita coisa nascer, crescer e em alguns casos, perecer.
Então vamos lá. Comecei a me interessar por cerveja aos 15 anos... Não, para! O passado botequeiro foi a porta de entrada neste mundo para muita gente. E não  precisamos voltar tanto assim!
Comecei a me interessar por cervejas artesanais em 2007, ano de nascimento da minha filha. Em 2008, quando parei de amamentar e podia tomar algo que não fosse um copo, tentava, junto com meu marido, encontrar cervejas artesanais em Brasília. Terra devastada. As opções eram Brahma, Antártica, Skoll. Era impossível encontrar cervejas artesanais por aqui. Mesmo as importadas. Lembro de uma Franziskaner no Carrefour vendida a preço de banana que até hoje a gente acha que foi vendida tão barata porque ninguém sabia o que era aquilo. Se se quisesse cervejas, que trouxesse na mala. E a gente trazia...
Haviam dois bares com cervejas em Brasília. A Stadt Bier e o Godofredo. A Stadt, gostem ou não, foi a primeira cervejaria artesanal do DF. E a weiss e a Delirium, eram quase as únicas opções de se tomar algo diferente num bar. Sem  falar que eles eram um brewpub (embora na época ninguém soubesse o que era isso). A Stadt foi a porta de entrada de muitos no mundo das artesanais. E, o Godofredo servia uma cerveja que o dono fazia que era uma base de pilsen e levava guaraná (antes da Göttilich Divina). Neste ano também descobrimos uma pequena lojinha na Asa Norte, que vendia cafés especiais, temperos e coisas do gênero e tinha uma prateleira pequena com algumas garrafinhas. Se chamava Empório Soares e Souza. O Empório SS virou uma Meca! Seus dez rótulos, que era mais ou menos o que tinha a época, viraram referência! Dali saíram as primeiras trapistas que eu tomei na vida, algumas pale ales inglesas e a Colorado Indica, que era a melhor IPA nacional que havia. Ali também conseguimos encontrar pérolas, que nem sei se chegam mais por aqui, como a Traquair house.
Se encontrar cervejas era uma missão difícil, fazer cerveja era praticamente impossível. Ninguém fazia. Haviam alguns grupos no finado orkut de São Paulo, Rio, Santa Catarina e outros estados que começaram na estrada cervejeira um pouco antes do DF que nos serviam de referência. Mas em Brasília, necas. Compramos panelas com fundo falso numa loja chamada A Turma, de Campinas, SP, fizemos um chiller na mão com tubos de cobre da Casa Iracema no SIA, válvulas de gás de casa de ferragem, furar panela no serralheiro. Os insumos vinham todos pelo correio, da WE.  Fazer cerveja era uma aventura difícil, desconhecida e sobretudo, muito cara. Não tinha site de internet, não tinha vídeo no youtube, não tinha ninguém que ensinasse. Com custo conseguimos uma cópia de um livro chamado How to Brew. Mas aí que começou a parte mais legal...
Nas idas e vindas ao Godofredo descobrimos que o Leonardo Botto tinha vindo dar um curso aqui em Brasília, fuçando na internet descobri um lugar que havia recém aberto as portas chamado Candango Bräu (e vendia malte pilsen, nos livrando de trazer pelo correio), e pelo orkut, descobrimos que não estávamos sozinhos na aventura de fazer cerveja em Brasília. Conhecemos outras pessoas. Um cara de minas, um ex-frei que fez doutorado em teologia, um engenheiro que ficou anos montado um arduíno,  uma alemão e sua sócia, um conterrâneo de Camboriú, uma menina que fazia vídeos, um casal roqueiro e o Rodrigo. O Rodrigo era praticamente uma pérola solitária no Cerrado. Ele fazia cerveja há sete anos! E isto em 2009! O Rodrigo foi um quase professor da galera. O primeiro encontro dessa turma cervejeira foi como primeiro encontro de namorados. Só amor (não no sentido literal, claro).
Disso veio a ideia de montar a Acerva, como nos outros estados (Minas, Rio, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). A Acerva Candanga foi a primeira Acerva fora do eixo sul- sudeste. Foram meses de discussões e conversas até a Acerva Candanga sair do papel (e saiu porque  havia um grupo de empresários querendo fundar uma tal Acerva DF, para fins comerciais. Aí a gente correu para se apropriar do nome). E vingou. Fizemos umas incontáveis brassagens juntos. Ronaldo Morado, autor do Larousse da erveja, morava em Brasília na época. Era um degustador experiente, conhecia todo mundo na Brasil. Foi nosso patrono. Ele experimentava com prazer (tá, as vezes nem tanto) as brejas que fazíamos. E nos dava suas impressões sensoriais. Na cozinha do meu apartamento, uma cozinha minúscula na Asa Sul, passaram tantos cervejeiros em formação que nem lembro. Quem dava os cursos na cidade era o Andreas. Mas eu e o Morris ensinávamos de graça, no meio de bebedeiras e diversão. Sem fins comerciais. Cerveja não era negócio para a gente. Então podíamos nos dar esta liberdade. Até porque, nós ingenuamente, não achávamos que fazer cerveja em casa fosse despertar interesse comercial para ninguém. Vender cerveja caseira? Era uma polêmica que simplesmente não fazia sentido. MAPA? Ninguém sabia o que era isso. Montar cervejaria? A gente precisava aprender muito sobre fazer cerveja. Nem passava pelos melhores sonhos.
O bacana de fazer cerveja e beber cervejas era a aventura, o se lançar no desconhecido, a despretensão. Havia na gente um certo espírito anárquico, que buscava uma forma de vida que combinasse diversão e alegria num modo colaborativo. Cerveja artesanal não era coisa de homem. Era coisa de casal, de família (quantas brassagens não havia uma corriola de crianças brincando enquanto os pais faziam cerveja). Haviam mulheres também. Que faziam junto. Que iam junto. Que experimentavam junto. E curtíamos todo mundo junto e misturado. Fazer cerveja era uma modo de vida anti- establishment. Éramos contra as formas de massificação. E criar uma cerveja era um ato revolucionário, que mostrava ao mundo que éramos sujeitos criativos e não engrenagens da grande máquina engolidora de paladares. Não havia a ambição do business, a necessidade de aparecer, os especialistas, mestres da área, os deuses da opinião. Éramos só um punhado de pessoas que gostavam de beber cervejas diferentes, que gostavam de curtir, que estavam aprendendo sobre rampas de brassagens, processos, leveduras, lúpulos. E tudo isso nos unia. Tacar malte nas panelas, trocar cervejas, receitas, eram atos desinteressados. Ninguém cogitava em virar empresário. Não havia o mercado. Não havia o crivo dos egos. Fazer cerveja era uma utopia boa.
Deste caldeirão tive o privilégio de ver muita coisa acontecer. O conterrâneo de Camboriú comprou uma kombi, o nosso professor abriu um bar, a Candango cresceu e formou uma geração de cervejeiros, apareceram vários outros figuraças para agregar, um biólogo que estudava drosófilas e que está mexendo com leveduras, um que está para abrir a sonhada cervejaria de anos, umas meninas incríveis (e mais um mundão de gente que não dá para listar aqui). Hoje já é possível encontrar cervejas artesanais em inúmeros lugares. Ninguém precisa trazer malte pale pelo correio e nem enrolar tubos de alumínio num balde para fazer chiller. Brasília já conta com duas cervejarias (ok, a Máfia abre em definitivo na semana que vem). Há uma terceira em construção. Quatro cervejarias ciganas. Há sites, blogs, eventos, um monte de especialistas na área. Temos até cervejeiros caseiros premiados nacionalmente, e a Acerva Candanga já virou uma referência.
Mas por que este texto?  porque eu tenho saudade deste espírito errante, desta pegada anti sistêmica de antes. A cerveja artesanal começou assim, numa perspectiva  de libertação de uma mesmice opressora. E aos poucos, vai se transformando numa diversidade de sabores. Mas também em mercadoria de consumo fácil. Há muito pouco do espírito investigativo de antes, há pouca paciência para o aprendizado. Pouco tempo de maturação da ambição pelo negócio.  Um excesso de opiniões permanentes e em alguns casos, um círculo de iniciados arrogante e sem sentido.
São devaneios de uma mente sonhadora? São sim... Mas estou nostálgica. E gostaria que as pessoas em geral se informassem sobre os temas nos quais defendem ou atacam com tanto vigor. Tudo tem uma história. Se apropriar dela é parte da formação de qualquer pessoa. E com a cerveja artesanal no quadrado não seria diferente.

Cheers!

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